“Chego a suspeitar da legalidade de um concerto de Jazz em que todos somos brancos…”
José Duarte
A expressão política na música, foi exposta em vários momentos da história e ao som de vários ritmos, expressão esta que pode ir desde os hinos nacionais, de partidos políticos, até às músicas de protesto e de libertação. A criação musical responde aos eventos contemporâneos das sociedades de onde emerge e as experiências e mudanças sociais acabam por traçar retratos destas mesmas sociedades através da música, deixando de ser mero entretenimento, para nos ligar individual e colectivamente.
Na década de 60, a guerra contra o Vietname ou o movimento dos Direitos Civis nos Estados Unidos da América, são um grande exemplo desta estreita relação entre música e política e daqui soaram grandes ecos revolucionários que são ainda hoje reconhecidos como hinos de resistência.
Wynton Marsalis refere-se ao Jazz como sendo a forma indolor de compreender a história dos Estados Unidos. Com o Jazz traçamos a rota dos navios negreiros e dos escravos trazidos de África para os Estados Unidos da América, obrigados a improvisar numa nova forma de vida e organização social. A ancestralidade do Jazz nasce através do corpo da escravatura, pelos cânticos espirituais e pelas músicas de trabalho, a forma encontrada pelos escravos para expressar o seu desejo de liberdade e a sua fé. Em New Orleans, pólo do tráfico de escravos, viviam pessoas de todas as nacionalidades lado a lado, assistíamos então ao nascimento do Jazz no início do século XX, pela mão dos descendentes da escravatura. Foi a abolição da escravatura que tornou possível o nascimento do Jazz, surgindo da consciência de um grupo de pessoas excluídas de uma sociedade mas profundamente submersas nela e impregnadas de Blues e improviso sob as leis de Jim Crow. Os músicos negros não eram aceites em salas de concertos mas facilmente poderíamos encontrá-los em igrejas, bares ou bordéis das zonas de prostituição. Instalava-se a Lei Seca, trazendo consigo uma vaga gigantesca de bares clandestinos com Jazz como música de fundo por diversas cidades, como Chicago ou Nova Iorque.
O Jazz acabou por tornar-se talvez o género musical mais democrático, uma voz de protesto, um megafone natural. Martin Luther King afirmou: “O Jazz expressa a vida, é Música Triunfante”, quando começou a sua campanha pelos direitos civis, a comunidade americana ligada ao Jazz junta-se a ele. O Jazz não gritava apelas pela liberdade, a sua música era ela própria um exercício para a libertação e muitos músicos tornaram-se símbolos desta revolta negra e espelhando o orgulho de ser negro. Louis Armstrong tornava-se a sonoridade capaz de retratar o fosso racial em que se edificara a América, com uma pobreza asfixiante e com repressivas leis segregacionistas do Sul. Em 1929, interpretava “Black and Blue”, que se tornaria uma peça-retrato da desigualdade racial. Em 1939, Billie Holliday, cantava em lágrimas “Strange Fruit”, poema que retrata os linchamentos de negros. Em 1954 Sonny Rollins compõe Airegin, Nigéria em simetria. Em 1958, Duke Ellington, compõe “Come Sunday”, fazendo a viagem dos afro-americanos, desde África até aos E.U.A. Em 1959 Charles Mingus compõe “Fable os Faubus”, em resposta ao racismo de Orval Faubus enquanto Governador do Arkansas. Em 1960, Max Roach grava “We Insist! Freedom Now Suite”, numa exortação à sublevação dos negros e assumindo o seu apoio total ao movimento dos direitos civis. Em 1963, John Coltrane grava “Alabama”, após a morte de quatro raparigas negras em Birmingham, assassinadas pelo Ku Klux Klan e dedica a Martin Luther King o seu albúm “Cosmic Music”.
Em 1964, Nina Simone, canta, para além de muitos outros temas relacionados com esta questão, “Mississippi Goddam”, em memória do activista assassinado Medgar Ever. Albert Ayler, em plena sintonia com o pensamento de Malcolm X, adopta a sonoridade da música Afro-americana com todo o cariz ideológico e espiritualista, numa elegia à luta e à liberdade. Em 1964, grava “Ghosts” numa invocação ancestral dos sons africanos, e denunciando o terror dos negros escravizados. Archie Shepp, abraça a subversão e a mentalização do povo negro descrevendo o músico negro como um reflexo do povo negro devendo por isso libertar num plano estético e social a América da sua inumanidade. Grava em 1967 um hino à revolução, sobre percussão africana “Magic of Ju-Ju”. Em 1971, Pharoah Sanders grava o albúm “Black Unity”, numa afirmação cultural assumida. O baterista Rashid Ali explica: “Tinhamos King, Malcolm, tínhamos os Panteras. As pessoas gritavam pelos seus direitos para ser livres e naturalmente a música reflectia todo esse período e o Free Jazz nasceu daí”. O conteúdo simbólico de Sun Ra, espelha de forma menos óbvia a situação social do negro norte-americano, numa “confrontação brutal do primitivismo naturalista africano com a supertecnologia electrónica do mundo branco dos E.U.A. — a viagem interplanetária representa no negro algo mais do que um acto material: ela é mito e ciência, magia e técnica, ilusão e realidade”.
Neste contexto cultural, os músicos de Free Jazz, quebraram as convenções artísticas e sociais, eles questionaram as representações e estéticas e estruturais do Jazz e influenciados pelos movimentos de direitos civis, criticaram a dialéctica entre as estéticas ocidentais e não ocidentais reexaminando a instituição e fazendo-se ouvir através da sua mensagem.
Por outro lado, também os líderes da luta política assumem a importância do Jazz enquanto ferramenta de luta e de manifestação cultural negra. Stokely Carmichael refere a música de Archie Sheep como sendo a grande beleza negra do poder negro.
Em 1985, a banda Cargo, lança o single Jazz Rap, num tributo aos grandes nomes do Jazz. Também o Hip Hop foi beber muito ao Jazz e a este espírito activista ao retratar a realidade urbana sentida pelos jovens negros na década de 80. Se nos focarmos, no rap com influências mais óbvias do Jazz vemos que as letras têm uma consciência política muito ligada ao Afrocentrismo, numa linha de continuação daquilo que tinham começado os The Last Poets, The Watts Prophets ou Gil Scott-Heron através do spoken word e da música, das suas tomadas políticas e poéticas, apelando à revolta contra os opressores e apelando à acção. O collectivo Native Tongues, de onde fazem parte A Tribe Called Quest, De la Soul ou Jungle Brothers, representa bem esta ligação entre o Hip Hop e o Jazz.
Já nos anos 90, Guru lança o primeiro albúm do projecto ”Jazzmatazz”, com a participação nos quatro volumes de músicos como Roy Ayers, Freddie Hubbard, Donald Byrn ou Herbie Hancock ao lado de rappers como MC Solaar, Common ou Erykah Badu. A estes nomes podemos juntar Digable Planets, Brand Nubian ou os The Roots. Madlib, produziu um dos albúns de referência neste género, “Shades of Blue”, baseado no catálogo da editora Blue Note, editora de Jazz de músicos como Art Blakey, Donald Byrd ou Horace Silver.
O sample é uma grande homenagem que o Hip Hop presta aoJazz e a participação de rappers em trabalhos de músicos deJazz o outro lado da moeda, sendo Robert Glasper e Roy Hargrove grandes ilustradores desta intercomunicação que flui hoje nos dois sentidos. É a história de uma viagem comum, que partilha uma narrativa social que tornou esta ligação mais que inevitável.
Riotgurrrl
Latest posts by Riotgurrrl (see all)
- Video: “Listen (Count on Me)” — Carter Woodz — March 9, 2017
- O Hip Hop e o Movimento Negro nos Estados Unidos da América — February 8, 2017
- Pele Negra Máscaras Brancas — Frantz Fanon — February 5, 2017